Sul da Fronteira, oeste do Sol - Haruki Murakami
- Júlio Moredo
- 2 de ago. de 2021
- 5 min de leitura
Atualizado: 9 de ago. de 2021
Lirismo universal numa autobiografia sincera de um angustiado buscando a poesia do amor

O célebre escritor pós-moderno japonês Haruki Murakami nos apresenta nesta obra singela e explícita suas memórias mais longínquas, indo escavá-las desde o tempo em que era uma criança às portas da pré-adolescência. Sul da fronteira, Oeste do sol tem, por isso, este título sugestivo, que une a cultura ocidental (o título remete em parte a um jazz norte-americano de Nat King Cole) com os cultos à família, profissão e vida social das ilhas nipônicas.
A trama se desenvolve de modo leve e sensível e, a despeito de ter sido escrita por alguém do outro lado do Mundo, com explicações sobre o significado de seu nome, modo de agir sendo um filho único (o grande trauma, tabu e drama inicial da vida do autor) e dificuldades de se encontrar naquela sua sociedade, há coisas tão universais quanto a descoberta do amor, da paixão, do lirismo e da sexualidade através do diálogo com suas primeiras companheiras femininas, Shimamoto, sua primeira amiga de infância, igualmente filha única, deficiente física e inspiração para a obra. E Izumi, sua primeira namorada de juventude de fato.
É através de uma leitura tranquila e centrada em nós mesmos que vamos assim desbravando o coração e lembranças deste prosador ousado e sem medo de parecer prosaico ou mesmo repetitivo com relação aos seus leitores, o que torna o diálogo com ele muito mais franco, pois esta relação subentendida desde a primeira página se soma a essa narrativa de dramas tão comuns a qualquer jovem, do Japão ou de qualquer outro lugar deste planeta.
A vida de Haruki muda de ponta-cabeça quando ele se separa de Shimamoto de maneira abrupta, pela mudança de cidade que seu pai teve de fazer, e que acarretou em sua transferência de colégio, deixando um vazio pela ausência daquela que será sua amada buscada durante toda a imersiva leitura no rumo de um Japão do Pós-guerra e já totalmente girando sobre a órbita capitalista, ocidental e norte-americana da época da Guerra Fria.
“As coisas vão endurecendo conforme o tempo passa, como cimento dentro de um balde. E, quando isso acontece, não tem como voltar. O que você quer dizer, resumindo, é que o cimento que te formou já está totalmente seco, e agora não existe mais nenhum você que não seja este. Não é isso?” (Shimamoto sobre a dificuldade de Haruki em se imaginar tendo irmãos, já que passou a vida inteira sem um e não consegue mais saber como seria não ser filho único)
Depois de certo tempo, o coração dissuade nosso protagonista, fingindo se esquecer de Shimamoto, e ele segue com sua vida, tornando-se um solitário, culto e atlético jovem adulto, que descobre sua potência sexual com Izumi, uma menina de beleza e família ordinária como ele, com a diferença de esta possuir dois irmãos. Os dilemas de ter sido com ela, e não com Simamoto, que o rapaz se descobre homem, começam a atormentá-lo a partir deste período.
Seu relacionamento bacana porém burocrático com Izumi, uma moça de sonhos modestos e desejo de existência estável, fez com que o jovem Haruki começasse a desejar com todas as forças os novos ares da capital japonesa, Tóquio, quando se formasse no colégio e fosse à universidade, ainda mais sendo os tempos da contracultura e da anti-arte dos anos 1960. Apesar de, como bom romântico e sensível, guardar com carinho as vivências com sua primeira namorada, o Mundo parecia sempre o chamar mais do que o carinho que ele tinha por ela.
O furacão de sua vida, a tormenta sexual que veio de repente e de modo arrebatador, foi justamente a prima de sua quase amada Izumi. Uma menina mais velha que ele três anos, já na faculdade e residente em Kyoto. Por carma ou não, ela também era filha única e tinha um namorado. Murakami nos narra esta aventura amorosa com a mesma intensidade que cada um de nós, homens ou mulheres, já amamos ou ao menos desejamos sexualmente alguém. Talvez por isso o lirismo se esconda atrás de cada passagem descrita com construções complexamente simples.
“É claro, que, além de ferir Izumi, também machuquei a mim mesmo. Feri a mim mesmo profundamente — muito mais profundamente do que percebi naquele momento. Esse acontecimento deve ter me ensinado muita coisa. Mas, olhando para trás, muitos anos mais tarde, o que eu tirei dessa experiência foi uma única verdade fundamental: ao fim e ao cabo, eu era um ser humano capaz de fazer o mal. Nunca foi minha intenção fazer mal a ninguém. Mas, quaisquer que fossem meus motivos e minhas intenções, conforme a necessidade eu podia ser egoísta e cruel. Eu era uma pessoa capaz de tecer várias justificativas e ferir de forma irreparável alguém de quem eu gostava.” (autocrítica de Murakami após o rompimento com Izumi)
Após estas aventuras carnais, seu relacionamento com Izumi se esfacela e ele ruma à capital japonesa para cursar letras, mantendo seu estilo de vida solitário de nadador e leitor assíduo. Na grande metrópole ele acaba por ir trabalhar numa editora de livros didáticos, trabalho mais do que mecanizado e sem nenhuma poesia, tão cara a ele, que vai ficando cada vez mais infeliz entre os 18 e os 30 anos de idade, onde mal se relaciona com mulheres em encontros frívolos. Quando estava á beira de completar três décadas de vida, já sem esperanças de se casar, Murakami conhece Yukiko, que viria a ser sua esposa e companheira ideal.
Com o casamento, de repente Haruki experimentou ser amado, protegido e cuidado por uma família além da sua. Conhecendo Yukiko por acaso, abrigado de um temporal, em três meses a pediu em noivado e, com a ajuda de seu sogro, uma raposa para negócios, abriu um primeiro e depois um segundo bar de jazz em pontos muito bons de Tóquio. Teve lucros consideráveis, engordou o patrimônio como um bom burguês que outrora execrava e era agora um responsável pai de duas filhas. A sensação de ter trapaceado, por causa do empréstimo inicial de seu sogro, nunca o deixou em paz e o fez novamente cair em tentações fúteis da infidelidade conjugal.
De um jeito único, a narrativa do autor envolve a todos que a leem por ter esse condão de nos apresentar uma cultura única, a nipônica, e sua visão0 de mundo, mas também toca em dores, traumas, alegrias e frustrações tão idênticas em qualquer parte do planeta, ainda mais em um Japão capitalista e reconstruído da guerra. A pequena fama feita pelos seus dois bares chamou a atenção inclusive de antigos colegas de escola, que o visitam. Um deles traz notícias nada bonitas de Izumi, que aparentemente se tornou uma pessoa amarga e sozinha muito graças a Haruki, o que o faz pensar e repensar no merecimento daquilo que havia conquistado. A volta de uma traumatizada Shimamoto, totalmente inesperada, coroa essa cambalhota incrível na vida desse futuro escritor e o dá mais certeza de que a vida só tem sentido quando buscamos o não verbal e o imaterial de cada relação, toque, visão, audição e olfato que a vida concede.
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