Requiém para o navegador solitário - O mar, a ilha e a espera
- Júlio Moredo
- 10 de nov. de 2020
- 3 min de leitura
Maior romance de Luís Cradoso, Requiém faz uma regressão aos sofrimentos do povo timorense durante a invasão e ocupação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. Narrado pela forte Catarina, a protagonista indonésia colecionadora de desventuras na colônia portuguesa, o livro é envolvente e muito sensível por causa do eu feminino

Obra de maior renome do timorense Luís Cardoso, Requiem é um livro de formação indenitária deste jovem estado dos confins do Sudeste Asiático.
A trama é escrita em primeira pessoa e escancara um estilo todo original de Cardoso em se comunicar, muitas vezes se valendo de figuras de linguagens, jogos de palavras com nomes de personagens e repetições contínuas de perguntas e afirmações (a trama começa com um “Nunca devias ter vindo”, que se repetirá para a protagonista durante todo o relato).
Por isso quem o lê tarda um tempo para se adaptar à sua literatura que, no início, é aparentemente confusa.
Vencendo-se esta barreira, que dura mais ou menos três capítulos (são dezesseis), a história de vida e juventude de Catarina, a protagonista, começa a se adensar para o leitor.
Ela, uma menina doce, culta e sonhadora que reside em Batávia (atual Jacarta), na antiga colônia holandesa das Índias Orientais, é incumbida pelo seu pai chinês e sua mãe de Cingapura a usar de sua beleza e inocência para sacramentar um acordo de comércio entre sua família e a colônia portuguesa de Timor Leste.
Ingênua e esperançosa por seu “príncipe encantado”, a jovem fica animada com a proposta de noivar com capitão do porto de Díli, a capital de Timor. Em troca de seu matrimônio, seu clã monopolizaria a importação de café timorense, enviando em troca sedas de toda a Ásia.
A partir da vinda da menina para a ilha durante os anos pré-Segunda Guerra Mundial, o relato se torna uma viagem social e política àquela longínqua terra: Seus hábitos, etnias e organização econômica são postos às claras no testemunho que Catarina vai dando.
Suas impressões sobre nativos revolucionários, degredados portugueses, comerciantes indianos, aventureiros britânicos e o governo geral da província, sobre as ordens do sádico inquisidor José Antônio, o “Lavadinho”, dão mote à série de desventuras que a moça enfrentará dali por diante.
O estupro de Alberto, seu noivo, e o seu sumiço por anos, cancelou toda a barganha e a fazenda de café Sacromonte, no interior da ilha, totalmente falida e às moscas para que ela, a aristocrata indonésia, a tentasse reerguer.
Desta forma, a vida quotidiana no local, governado por um fascista europeu (Salazar), e às vésperas de enfrentar uma invasão japonesa e australiana, transforma tudo em um drama feminista de uma alguém sem esperanças, afastada das ilusões de amor eterno e família constituída, dando lugar a uma mulher fortalecida pelas dores e amarguras que o destino foi-lhe causando.
O desenrolar de Catarina é, assim, confundido com o da própria colônia, em uma escrita cheia de metáforas incutidas nas brincadeiras de palavreado, como, por exemplo, Semedo, o “com/sem medo”, que foi o terceiro capitão da cidade e se afeiçoa à heroína.
Outro aspecto importantíssimo de ressaltar é a sua devoção e magnetismo aos gatos, figuras mitológicas em toda a Ásia. Catarina recebe um deles de seu suposto príncipe como presente de noivado.
Após suas agruras, ela finalmente descobre que os sucessivos felinos deixados pelos homens subsequentes não são nada menos do que um agrado a potenciais concubinas e damas de companhia.
Vendo-se emaranhada em uma trama política de libertação timorense e alarde pela invasão da ilha por australianos e nipônicos, Catarina faz de tudo para manter a dignidade do malfadado cafezal e da sua família de adoção: os gatos, Madalena, outra iludida por Alberto, sua filha Esmeralda (a “Pedra Preciosa”) e seu próprio filho com o capitão, Diogo.
Luís nos dá uma perspectiva de alguém que se tornou forte pelas circunstâncias, tornando-se uma política hábil para manter amizade tanto com o anarquista Rodolfo Marques da Costa, gerente do famoso Hotel Salazar, como com os embaixadores e espiões do Japão e do reino Unido. Dessa forma, a agora chefe de família vai provando sua resiliência em enfrentar a vida dura que veio a ter.
Trazendo consigo desde Batávia uma cópia do livro do aventureiro francês Alain Gerbault, um homem que abandonou a vida na civilização por vê-la condenada, Catarina começa a esperar, de lampião aceso (não havia luz elétrica em Díli), pelo próprio Alain (que de facto existiu e morreu em Timor). Ele seria o seu “Navegador Solitário”.
Para além de ser um ótimo modo de conhecer um país lusófono do outro lado do mundo, a mistura que Requiem faz da vida de Catarina, o machismo e a solidão que enfrentou, com a situação política do próprio território tornam a leitura muito recomendável. A espera da moça por Gerbault invoca, com beleza e graça, a atração genuína que cada um de nós tem pelo mar, o refúgio utópico e o descanso eterno depois de se fugir da estupidez e brutalidade humanas.
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