A Hora da Estrela - Clarice Lispector
- Júlio Moredo
- 19 de jun. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 20 de jun. de 2024

A dureza amável de se sentir e viver sabendo-se ou não que o fazemos; o carregar da alma durante essa estada planetária narrado por uma maga da palavra, sacerdotisa da introspecção
A Hora da Estrela, último trabalho da escritora ucraniano-brasileira Clarice Lispector, de 1977, é uma profunda reflexão sobre a materialidade, sentido e experiência do existir e estar vivo. Com uma prosa direta mas forte e filosófica, beirando a ponderação de um final de vida, como, infelizmente, fora o caso da autora, a novela é uma preciosidade literária que poucas vezes tive o prazer de ler, e tudo com pitadas de humor tragicômico tão peculiares na autora.
O desenrolar da trama, muito bem encadeada e pormenorizada nos hábitos, (des)crenças e desejos dos personagens, se dá na mescla entre as impressões pessoais do narrador, o escriba Rodrigo S.M., que criou Macabéa, a protagonista. Diz ele que a moldou de “sua atormentada cabeça”, já frustrada e fatigada de tanto doer-se ao viver.
Contudo vai-se ficando claro ao leitor apurado e adaptado ao texto de que muito daquele homem velho reside na própria Clarice. Da mesma forma, a figura principal também existe em cada esquina das grandes cidades brasileiras, vivente da e na pobreza intelectual e sentimental, em trevosa e angustiosa ignorância tanto das dores como das delícias de se ser quem é, o que, paradoxalmente, enrijece e até enriquece a alma, fazendo Macabéa aguentar seu anônimo e desimportante dia a dia.
A Estrela da história é descrita por Rodrigo como uma alagoana paupérrima trazida ao Rio de Janeiro pela moralista e carola tia, que a cria após a morte prematura dos pais no seco sertão nordestino. Ela nem sabe que pensa porém pensa, tal e qual nos demonstra o modestamente genial prosador, que também coloca em cada descrição lírica e material do o seu modo de enxergar o mundo e persistir nele, o que dá ainda mais riqueza ao livro, já um primor lexical.
Vivendo em um cortiço na zona portuária da cidade carioca, a menina, frágil, feia por sua própria falta de vaidade, além de virgem, ingênua e com traços de ignorância que acusam um abandono do Estado brasileiro em ampará-la à luz da consciência crítica, vai aturando a rotina de datilógrafa e taquígrafa numa pequena empresa, onde tem por patrão “seo” Raimundo, homem ríspido de aparência paciência tentando ser complacente com a falta de jeito de Macabéa para o serviço. O excesso de humildade da pobre garota o compadece na mesma medida em que sua impaciência estoura por seus corriqueiros erros.
Um dia, numa ida e vinda de trem após suas tarefas laborais, ela conhece Olímpico “pelo cheiro da mesma espécie”. É ele um homem do Nordeste, paraibano da gema cheio de sonhos de grandeza política e redenção de sua exclusão social. Alguém igualmente sofrido mas por isso amargurado e de masculinidade frágil. Ambos se enamoram e começam um breve e frio relacionamento.
É aí que as virtudes da frágil cabeça de Macabéa, prosaica pela parca formação, se sobressai sobre os vícios narcísicos do companheiro de andanças pelos subúrbios. A grosseria automática e quase covarde de Olímpico para com a anti-heroína da novela põem os leitores a rirem chorando as desgraças desse mundo injusto em que habitamos.
Toda essa rudeza e até brutalidade com que Olímpico a trata é mansamente abraçada pela donzela, que pensa ser merecedora tanto daqueles coices como das rápidas carícias (se é que se pode chamar assim) do pequeno namorado, retratadas em passagens em que ele lhe paga um café (reiterando que só pagaria um puro, se o com leite, pingado, fosse mais caro a diferença seria dela), ou quando vão ao zoológico ou à praça e, entre uma patada e outra, o homem permitiu a Macabéa divagar sobre vôos de avião, canto lírico italiano e até suas impressões e curiosidades aprendidas na Rádio Relógio, aquela que dava a hora em minutos pingados como gotas d’água, tudo junto a cultura geral e anúncios, a preferida da mocinha.
Aquela castidade opaca da menina faz com que o bronco metalúrgico a dispense para namorar uma colega de uma colega de trabalho desta – Glória, mulata pequeno-burguesa com ares de grandeza cafonas, tinta barata nos cabelos e convencimento no andar, prostar e falar.
A solidão de alma, o desamparo em todos os seus mais amplos tentáculos são colocados de maneira metafórica ou direta, fria ou em brasas por Lispector ao narrar com maestria os sentimentos confusos e incertos, sem regência, que pululam pelo espírito e corpo da pobre jovem, agora traída e ainda mais perdida nos arremedos do que Guimarães Rosa chamaria de “sertão de dentro da gente”.
Descrições e circunstâncias ímpares da autora, sob a máscara do narrador, demonstram a bondade que vem aos humanos quando se sentem por cima, realizados, por ora satisfeitos de suas conquista, honestas ou não. Foi o que ocorreu com Glória que, um pouco apiedada de ter roubado Olímpico de Macabéa, não só a convida a um farto almoço em sua casa como empresta-lhe dinheiro para visitar uma engraçada cartomante, ex-prostituta e caftina.
Madama Carlota, como era chamada, guia Macabéa à sua primeira explosão genuína de alegria ao dizer que ela teria êxito, felicidade e amor, e ainda por cima de um gringo! Como felicidade e tristeza, júbilo e luto, pulso e fenecimento andam talhados às costas uns dos outros, o desfecho preparado pela brilhante intelectual nos leva a pôr a pequenina Estrela ao colo, acolhendo-a com toda a nossa alma, avisando-a que nós também sofremos, por nossas vidas e pela dela, tão espelhada na de todos nós pois, no fim, como a Estrela da novela, também "somos sino que quase chega a badalar no movimento".
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