Max e os Felinos – Moacyr Scliar
- Júlio Moredo
- 12 de jan. de 2024
- 6 min de leitura
Uma aventura pós-moderna fantástica pelo oceano que margeia os continentes físicos e humanos, que atravessamos levando nossas escolhas, atos, traumas, medos e alegrias

Deliciosa novela envolta em involuntárias polêmicas por emprestar uma ideia original a um best-seller anglófono, “As Viagens de Pi”, do canadense Yann Martell, Max e os Felinos segue a pegada de seu autor, o gaúcho Moacyr Scliar, num enredo acessível mas denso, sucinto mas rico, amplo mas detalhista que.
Deixando o suposto plágio de lado, já que o próprio Scliar minimizou, e com muita grandeza, a pecha de usurpador do canadiano, tratemos dessa famosa e nuclear obra: ela trata, na essência, de um náufrago juvenil que convive em alto-mar com uma besta-fera de zoológico. No caso, o maior felino das Américas, um jaguar.
Esse fato incrível e mesmo fantástico, além da relação entre ambos, o protagonista, Max, e o grandioso bichano americano visam comprovar a forte relação entre homem e natureza e, acima de tudo, a psique arquetípica, pois o animal é visto como um monstruoso farol dos traumas prévios do rapaz, desnudando seus medos e aflições. Este clímax, porém, é apenas parte da rica construção narrativa, que apresenta muito mais do que os dias tormentosos que menino imigrante, vindo da Alemanha para o Brasil, viveria nas curtas e brilhantes páginas.
A história se inicia em Berlim, capital alemã e cidade natal de Max, filho único do casal Hans, comerciante de peles de segunda mão, e Ernn Schmidt, uma atriz e artista falhada pelas agruras da vida feminina da primeira metade do século XX. Seus progenitores são o clássico casamento sem amor, enlaçado por conveniências familiares de uma pequena burguesia germânica. Assim, a infância do rapaz é repleta de embates com o autoritário e limitado pai e o terno carinho materno, que vela e zela por sua alma igualmente sonhadora e lúdica. Ambos não encontram morada dentro do cartesianismo tacanho cultuado pelo ranzinza, preconceituoso e até violento Hans Schmidt.
Entre idas e vindas do estoque/almoxarifado da loja de casacos de pele de seu pai, onde o imaginativo Max lia, refletia e criava asas aos seus sonhos e pensamentos, havia também, de enfeite, um tigre-de-bengala que o pai havia caçado na Índia. Ele sempre teve uma relação imagética impactante com o monstro empalhado, o que era um prenúncio do que ele viveria e, ao mesmo tempo, do que aquele tipo de bicho significaria em sua vida.
O simbolismo está no desconhecido, no respeito à natureza e temor de punição pelos pecados dos humanos, da onisciência e onipotência do superior e celeste, tanto a divina Providência como a tirania humana. Este amalgama se condensa ainda mais num contexto de plenos anos 30, pré-Segunda Guerra Mundial e durante a apavorante ascensão do nazismo.
É no quartinho, sob o olhar baço e vítreo desse taxidermizado tigre, que o juvenil vai se desenvolvendo e se descobrindo inclusive de modo viril e sentimental, pois foi naquele cômodo que Max deita-se em amores pela primeira vez com a espevitada Frida, empregada da loja.
Max, então, vira-se em homem ao experimentar as paixões carnais nos braços fúteis mas alegres de Frida, envolvendo-se posteriormente muitas vezes com a moça mesmo após sua demissão por seu pai depois deste arriscar tudo para dar-lhe um casaco de peles, roubando a loja da própria família para concretizar o desejo da amada. A empresa é feita através de muitos perigos de uma noite chuvosa e com a imagem do tigre empalhado a mirá-lo, o que fez com que este quebrasse uma das vidraças do balcão de negócios do estabelecimento comercial.
É a partir deste caso de paixão adolescente que o enredo engata uma velocidade agradavelmente detalhista em seus acontecimentos: Frida é acusada de roubo após ser vista por Hans com o casaco de pele; Ela e Max vivem de modo mais ardoroso o romance após o episódio, já que Max se mantém leal a ela ao assumir o delito em seu nome, recebendo a devida punição. Neste ponto também nos é introduzindo Harald, melhor amigo e confessor de Max. Por ser assexuado e, dessa forma, impotente, o protagonista tenta fazer com que ele “desencante” vivendo uma noite de sexo libertador com Frida.
A ideia não dá certo e, para piorar, Harald é militante socialista (estava na última marcha que entoou a Internacional em Berlim) e, por isso, começa a ser perseguido pelo marido da moça, um nazista fanático que descobre a infidelidade matrimonial.
Como estamos falando de um período entre 1932-33, quando Hitler toma conta de todo o Estado germânico, o esposo traído chega ao nome de Max, o que faz com que Frida procure o rapaz implorando-o que este fuja às pressas num cargueiro que iria ao Brasil (país que o garoto já conhecia de livros e aulas universitárias do professor Kunz e que o intrigava por sua exótica fauna e flora). Numa despedida tocante e fugaz de seus pais, num adeus para nunca mais, Max se vê do dia para noite no porto de Hamburgo embarcando rumo ao exílio forçado às terras brasílicas, que tanto o atraíam.
Num engano de horários, contudo, ele perde o navio arranjado por sua amante, o que o faz se virar para encontrar outro, o Germania, com destino ao porto de Santos mas que, como se veria, estava fadado a afundar pela tripulação de patifes, dentre eles o sr. Ettore, um italiano dono de zoológico que levou seus animais para naufragar a fim de lucrar, como os demais, com o seguro da malfadada viagem. Alheio a isso está o pobre emigrado, longe de tudo e de todos os que ama, salvando-se por puro instinto mesclado à esperteza num escaler do convés.
Estando exatamente no meio do Atlântico e sem perspectivas de salvamento imediato, Max recorre às habitações mentais de seus sonhos e solidões para aplacar a perda de tudo o que conheceu. No meio deste cenário por si já profundo é que ele tenta puxar um longo caixote para servir-lhe de guarda-sol contra o inclemente calor dos trópicos. De lá entretanto sai um de seus piores pesadelos — o grande felino, o selvagem e esbelto jaguar.
“E se fosse um sonho, aquilo? E se não passasse de pesadelo, o jaguar? O jaguar e o naufrágio? O jaguar, o naufrágio, a fuga da Alemanha? Um pesadelo do jovem Max? Ou ainda, um pesadelo extraordinariamente longo e penoso do menino Max, enfim adormecido depois de um dia de intensas emoções (...)” (Página 73).
Em uma alegoria que dá margens a múltiplas interpretações que vão desde a tirania que persegue-o até em alto-mar, já que Max teve de alimentar, aperfeiçoando suas técnicas de pesca, o jaguar a fim de não ser dele presa, passando pelas traduções mais intimistas, como o alimentar e conviver com nossos demônios, dores e traumas conscientes ou inconscientes, e indo até a simples e pura relação entre homem e besta-fera, natureza indomável alheia a pecados, desgraças e atrocidades produzidas na Terra pelo ser humano.
Durante alguns dias Max convive com o grande gato dormindo e acordando em vigília de seu comportamento, enfiando peixes e mais peixes em sua goela. Pra sua sorte, algo que vai crescendo durante o relato, bem na situação-limite de confrontação por espaço, sobrevivência e primazia entre ele e o puma Max desmaia e a fera desaparece, numa bela manobra literária de Scliar para nos instigar o questionamento se tudo aquilo foi real ou apenas a imaginação do personagem em luta com suas bestas internas naquele momento de transição, de mudança de costumes, impressões e amores naquela estrada aquática que dividia seu passado e futuro: o oceano, ponte entre duas vidas.
“O bicho olhou-o com uma expressão de tal genuíno assombro que Max se convenceu: não, não era um robô. Poderia, isto sim, ser um jaguar amestrado, condicionado para se mover no cokplexo labirinto de suas emoções, para lhe servir de sparing nesta luta pela sobrevivência; para maltratá-lo sem mata-lo, para leva-lo à exasperação, às últimas reservas psíquicas.” (Página 75).
Encontrado por um navio da Marinha brasileira, o barco militar segue rumo a Porto Alegre via Lagoa dos Patos, conforme itinerário prévio. É, dessa forma, por acaso que Max inicia sua nova existência na capital gaúcha, sempre assombrado pelo fantasma do convívio com o felino, o do barco e os da sua mente e alma.
Com estes últimos virão os malfeitores reais de seu passado, isto é, os integralistas de extrema-direita brasileiros, o antissemitismo que ele, sem querer trouxe da sua Alemanha 9º próprio autor era judeu) e, pior, os próprios simpatizantes nazis radicados no Novo Mundo durante e depois da Segunda Guerra, finalizando de modo surpreendentemente forte esta novela que finda na América, este continente nosso que tanto do Velho Mundo traz em si. Tudo isso faz de Max e os Felinos uma deliciosa experiência reflexiva sobre nossos temores, coragens, deveres e haveres nesta vida dura de obstáculos diários.
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