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O testamento do senhor Napumoceno - Humor cabo-verdiano

  • Foto do escritor: Júlio Moredo
    Júlio Moredo
  • 10 de nov. de 2020
  • 5 min de leitura

Romance divertido e bem-humorado de Germano Almeida, que retrata com muitos detlhes a vida controversa de Napumoceno da Silva Araújo, suas agonias, ascenção e queda, sempre em paralelo com a vida, cultura e cotidiano do próprio país insular

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Livro mais conhecido de Germano Almeida, O Testamento do Senhor Napumoceno traz humor a um enredo já sugestionado no título — A morte, as homenagens e as últimas vontades de Napumoceno da Silva Araújo, próspero e respeitável comerciante do Mindelo, cidade da ilha de São Vicente, pertencente ao arquipélago de Cabo Verde.


No primeiro capítulo este testamento é lido por seu sobrinho, o ambicioso Carlos, seu aparente único herdeiro direto, e mais dois amigos próximos. Para a surpresa de todos eles, que julgavam conhecer bem o metódico empresário, sua carta final está repleta de revelações financeiras não muito agradáveis a Carlos, como uma filha extraconjugal com sua faxineira, dona Chica, e a redistribuição das verbas de pensão relacionadas a ela. A narrativa, com narrador terceiro confundindo-se com o próprio defunto, traz sempre muita ironia, sarcasmo e boa fluência textual, sem aspas ou espaços nas falas das personagens.


A partir do segundo período, numa criativa viragem, Germano volta ao passado de Napumoceno quase que em memórias póstumas, dando a impressão que a aparente cólera do sobrinho após a revelação de seus últimos desejos foi aplacada, o que, na verdade, é apenas uma regressão aos anos turbulentos em que a pequena república insular foi proclamada independente de Portugal, em 1974. Foi precisamente nesta época Napumoceno redigiu sua carta derradeira como um testemunho do que viu, viveu, sentiu, acertou e errou na vida, considerando-se um morto-vivente desde então, mesmo vindo a falecer dez anos mais tarde.


Nesta época, Napumoceno trancafia-se em sua casa para redigir suas memórias já pensando em tudo prover à sua filha, Maria da Graça (leitora e investigadora do testamento). Junto a isso, o protagonista vai sendo retratado como alguém em redenção ao materialismo que sempre o seduziu: A dialógica dos ternos completos, por exemplo, mostram como ele pouco a pouco foi se desapegando desses bens volúveis e mundanos, já que ele mandava trocá-los de dois em dois anos a preço de custo, num claro convite do autor a refletir sobre as poses, pompas e regras sociais. No seu funeral, inclusive, houve a necessidade de improvisação de um terno recomprado por Carlos para envolvê-lo, já que o que estava em sua posse alagara após uma inundação por torneira.


Em mais uma sátira do esnobismo, nesta parte também é mostrada a sociedade do personagem principal com os Ramires na empresa de importação/exportação, incluindo essa família como pessoas com ganas de parecer ricos em meio a uma realidade falida e a quem Araújo teve de socorrer para salvar todo o projeto.


Os relatos subsequentes mostram o porquê de ter deixado quase à míngua o próprio sobrinho e herdeiro natural, Carlos, ao enumerar suas qualidades para o negócio e dedicação à empresa, mas também seus imensos vícios e defeitos, como a ganância e a indolência. Da mesma forma, a inimizade com Baptista, seu primeiro empregador a quem ele enganara, é contrastante com o fim do desafeto, que virou segurança do grande galpão da empresa Araújo, Ltda quando Napumoceno prospera e eleva o rival a um cargo subalterno, num gesto nobre mas também hipócrita e punitivo a alguém a quem o ladino senhor via como um rival a bater.

“Carlos revelou-se um parente ingrato e como homem de bem que sou e sempre fui, tenho o dever moral de jamais lhe perdoar. Mas por outro lado (...) é enormíssima vantagem a vantagem de um filho espúrio, desde que se cumpra a condição de secretamente o amar, porque estes filhos têm a particular de não nos causar aborrecimentos molestadores da nossa dignidade e com eles não corremos o risco de ver espezinhado o nosso sentimento de orgulho pessoal, na medida em que somos apenas nós a gozar o doce frêmito do prazer de o amar... (Página 32, capítulo 3)


Após consolidar sua posição de maior exportador/importador de Mindelo num insólito lucro inesperado da venda de “guarda-sóis” (na verdade eram guarda-chuvas) após inesperado dilúvio, Araújo torna-se um lorde local de tanto enricar com a demanda pelo produto. Este, incluso, é o ponto de viragem para sua mudança altruísta. Assim, Napumoceno começa, desconfiadamente, a delegar maior poder de decisão e diligência ao sobrinho, e inicia uma fase de maior humanismo em sua vida. Lendo e viajando muito, o agora sessentão acumula ideias para virar homem público, ajudar a unir os cabo-verdianos em prol de uma nação a construir, quer virar deputado, prefeito de concelho em São Vicente, quem sabe. Nessas divagações conta com a interlocução de Sousa e Fonseca, seus melhores amigos.


“(...) Acabara por concluir que a mesma é a mão que faz as pequenas coisas maravilhosas que nos deleitam e também os instrumentos mais mortíferos para a destruição do homem. E seguindo nessa linha de meditação, tanto se podia dizer que somos tão pobres que o nosso cais nem guindaste tem, como também que somos pobres mas não corrermos o risco de nos autodestruímos. (Reflexões de maturidade de Napumoceno sobre o futuro do país, capítulo 3)


O moderno e o tradicional são postos quase como que em duas alças de balança, com Araújo sendo fervoroso adepto de uma aproximação com os norte-americanos no contexto da Guerra Fria, para ajudar a trazer progresso e conforto ao seu pequeno e bucólico país.

Germano vai, assim, mostrando o passado de ascensão do humilde migrante Napumoceno, que, com muita esperteza e metodismo à mistura, posicionou-se como figura de proa do Mindelo desde os primeiros passos da firma até seus casos amorosos ímpares e malsucedidos, como na paixão com dona Chica, na ternura de d. Rosa, no mágico platonismo com Adélia (o trecho mais belo e lúdico da trama é este misterioso romance), o fogo da senegalesa e a amizade colorida com Armanda. Ele se tornava, enfim, um homem que se desprendeu das futilidades do mundo e buscava as artes e o amor depois do sucesso financeiro.


Mas a alma do romance, por assim dizer, está na regeneração e mesmo evolução espiritual de Napumoceno, como procura ser justo e pesar o que de bom e mau fez a pessoas e como deveria recompensá-las (ou não, no caso de Carlos e Baptista) pelos seus atos para com ele em vida. Ele vai, então, tornando-se uma sublimação do que era quando jovem, numa clara redenção em vida de alguém que, como todo mundo, é imperfeito. Tudo aquilo que ele compulsivamente acumulava foi ficando pobre, triste e irrelevante ante a ausência de um amor tardio em sua longa vida. Napumoceno aflora, desta forma, um lado sonhador e lírico, o que faz da obra um ensaio sobre a sociedade destas ilhas africanas, mas também algo universal, de busca por ser alguém melhor durante o tempo em que cá estivermos.

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