Lembrando Babilônia - Viagem para a Austrália colonial
- Júlio Moredo

- 10 de nov. de 2020
- 4 min de leitura
Romance dedicado ao saber-se, esquecer-se e reformular-se numa terra completamente nova e agreste como era a Austrália de meados do século XIX, povoada principalmente por puritanos ingleses, escoceses e irlandeses

Notável por suas reinterpretações históricas, o australiano David Malouf põe em Lembrando Babilônia uma fluída prosa pós-moderna à luz da dificílima colonização da Austrália, na segunda metade do século XIX. Seus protagonistas são Gemmy Fairley, um náufrago inglês que passa a viver entre os nativos e a família imigrante que o adota, os MacIvor, da Escócia.
O título sugere, dentre outras coisas, a luta gigantesca do personagem para recuperar o seu elo perdido, sua Babilônia da Civilização. Envolvente desde o início, o texto nos apresenta o povoado de Bowen, na costa norte de Queensland, 900km longe de Brisbane, a incipiente capital. O local é cercado de pântanos e florestas tropicais. Sua configuração populacional não ultrapassa algumas dezenas de chácaras, com correio, bar, igreja e escola primária ao centro.
O casal Jock e Ellen McIvor tem duas filhas: a inteligente e sonhadora Janet e a terna Meg, além de um sobrinho, o orgulhoso Lachlan Beattie. A trama tem inicio quando os primos estão brincando junto ao jardim. Intrépido e destemido, Lachlan avista algo se mexer no cercado. Com espanto, vislumbra no calor a figura de um homem magro, branco e louro com aspecto degenerado. “Não atire! Eu sou objeto inglês” (Gemmy para Lachlan)
Aparentando fadiga e demência, o rapaz mal consegue se comunicar em inglês e urra de temor de seu “captor”. Sua bondade essencial é tocante desde o início. Levado à vila, ele desperta curiosidade da vizinhança por aquela alma desgarrada, desertada ou capturada. O ocorrido vira o assunto e questão a se resolver - quem ele era virou um jogo, uma gincana também para Gemmy, que tentava se reencontrar com sua língua materna.
“Era a gagueira. Ela pertencia a alguém que ele pensava ter ido embora, ter se perdido, e ali estava outra vez, em seus lábios. (...)” (Trecho do romance)
Deste pequeno progresso veio a longa entrevista de Fairley ao reverendo Charles Frazer e ao frustrado e atormentado professor George Abbot. O religioso, propenso a se abrir à cultura e benesses da terra, aproveita a comunicação limitada e força respostas ao errante, enquanto Abbot as registrava em caderno. Ao final, o relato instila ao leitor mistérios, pois a memória de Gemmy possui relances de pessoas antigas.
“Todos os acontecimentos da sua vida (...) haviam ficado enrolados no fundo dele como uma comprida jiboia. E agora ela estava desperta, erguendo sua cabeça cega, ela fazia emergir uma espiral depois da outra, para a luz do sol.” (Trecho do romance)
Em um dos capítulos, então, a saga de Gemmy até as mãos dos aborígenes é relatada com encanto poético. Ele foi achado por eles na praia, aos treze anos, junto à maré baixa. Seu pensamento, memórias, sentimentos e ego passam em profusão de palavras por seu corpo e mente. Suas pequenas lembranças do passado britânico são postas de lado para entender os costumes do grupo. O que ele usava para não passar fome nas ruas inglesas e no vasto oceano, algo similar a um Oliver Twist, aplicava agora com a tribo, mas em língua e cultura distintas.
Da pantomima que o rapazola inventou para ser aceito resultou numa solidão parcial, o que contribuiu para ele ser um ninguém, vagando no passado vazio sem um futuro. Assim, há uma explanação de como o adolescente amadureceu. A curiosidade ancestral de seu ser, chamado “espírito” pela crença dreaming (religião) aborígene, fez com que seu corpo buscasse em Bowen o seu elo perdido. O reintegrar foi, por isso, como completar um buraco de alma.
Para além da prosa firme e elegante, o que encadeia a obra é a transgressão entre um enredo nacional, da história da Austrália, e uma aventura universal de alguém que perdeu o fio da meada da própria existência.
Gemmy é legado aos cuidados dos MacIvor e sua relação se torna familiar com eles, virando servente da chácara. Com Ellen mantinha uma ternura indecifrável, a Jock uma subserviência instintiva, e ao trio de primos uma ingênua tutela, permitindo que Lachlan seguisse sendo seu “mestre”.
No povoado, entretanto, ele era visto como uma ameaça em potencial, um espia dos negros. A teoria era de que ele foi “transfigurado” por dezesseis anos de selvageria, num aceno do autor para o racismo da época, no contexto social determinista do “fardo do homem branco”. É, portanto muito claro que o homem da selva remete ao povo uma sensação de diferença e semelhança perturbadora.
Numa tarde, dois aborígenes visitam Fairley para ver o estado de seu espírito e estória (dreaming), concluindo que ele estava em maus lençóis entre a doente sociedade colonial.
“O ar com que respirava não fazia nada bem, nem a comida (...) A terra lá para cima era a sua mãe (...) Pertencia a ele, assim como ele a ela; não por nascimento, mas por um dom” (trecho do romance)
A partir deste ponto, o ato de “lembrar Babilônia” se mostra uma carência diária de cada um em Bowen. Os traumas de cada aldeão são postos em perspectiva. Suas vidas passadas, sonhos, anseios e recordações. Para Jock, que defendia seu agregado de calúnias, vieram represálias. A família MacIvor, em nobre evolução sentimental, sentia-se cada vez mais excluída daqueles que haviam sido seus amigos.
Malouf nos dá essa percepção quando, sentados a ver o pôr do sol na colina, os olhos do casal se abrem ante a ignorância brutal de seus vizinhos. Eles sentem o milagre da natureza, a saudade infantil da terra natal e a consciência de que têm apenas um ao outro. Janet, a mais velha, acaba mesmo se voltando à criação de abelhas pelo fascínio que elas lhe incutiram em uma experiência de quase-morte, na casa da excêntrica Sra. Hutchence e Leona, nova morada também de Gemmy.
Apesar de o leitor sentir falta de uma linearidade temporal, escassa em capítulos que intercala personagens, o drama ruma a um desfecho imprevisível, com o dreaming de Gemmy fustigando-o física e mentalmente em pesadelos regados a sofrimentos dos maus sentimentos nutridos por ele e que seu espírito absorveu.
Resta a ele escolher proteger a família que o acolheu e transcendeu diferenças ou voltar para seus irmãos negros, sem garantia de descobrir quem deveras ele realmente é, foi ou seria. O âmago oculto das pessoas faz de Lembrando Babilônia um livro obrigatório àqueles que desejam compreender a si mesmos, o ambiente em que vivem e viveram e seu papel moral e espiritual nele, além de ser uma rica viagem às terras austrais da Oceania.




Comentários