Judas - Uma lição milenar para vidas atuais
- Júlio Moredo

- 14 de out. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 10 de nov. de 2020
Abrangência e completude são as duas palavras que se vêm à mente quando tentamos analisar esta obra-prima em romance do escritor israelense Amós Oz onde traidores muitas vezes são visionários incompreendidos.

Abrangência e completude são as duas palavras que se vêm à mente quando tentamos analisar esta obra-prima em romance do escritor israelense Amós Oz. De forma muito diligente e poética, o autor-narrador, onipresente, nos apresenta a história dramática de Shmuel Asch, 25 anos, alto, desengonçado, barbudo e asmático. Estudioso das ciências humanas, em especial das religiões, vive ele na Jerusalém da segunda metade do século XX, toda rachada ao meio pela guerra com a Jordânia. Seu trabalho de pós-graduação tem por tema a figura do traidor de Jesus, Judas Iscariotes, e a importância direta ou indireta que a o nazareno deveria ter tido para reformas e tolerâncias no judaísmo.
O mundo do sonhador, emotivo, carente e arrogante Shmuel desaba quando a empresa de cartografia seu pai vai à falência e ele se vê de um instante para outro desamparado de sua tese universitária e curso. Seu progenitor é, inclusive, um imigrante letão e chefe de uma família frígida e infeliz com sua mãe e irmã Miriam, estudante de medicina na Itália. Para o rapaz, soma-se a essa tragédia pessoal a desilusão com o partido stalinista de Israel e, acima de tudo, a dor abissal do abandono pela então namorada, Iardena, que aceita se casar com seu namorado anterior, um estável e insosso hidrólogo.
Lutando contra sua própria natureza depressiva, o protagonista encontra no mural da faculdade um anúncio de um “contrato pessoal” para ser companhia de luxo, quase que um interlocutor de plantão, de um inválido que mora do outro lado da cidade, um intelectual chamado Gershon Wald, excêntrico como ele e cheio de reflexões e pensamentos da vida cotidiana até o seu mais elevado grau de existencialismo. Atalia Abravanel, ama-seca da mansão, foi autora do anúncio do emprego e, com algum encantamento por Shmuel, o aceita para a função. É ela uma senhora avessa à infantilidade belicosa e desprezível dos homens.
“Tem vezes que a marcha da vida se reduz, gaguejante como água que escorre da calha e vai correndo e abrindo um pequeno sulco na terra do quintal. Essa corrente é retida por um montículo de terra, absorvida, acumula-se por um instante numa pequena poça, hesita, vai tenteando e corroendo o montículo de terra que lhe obstrui o caminho ou abre uma passagem por baixo dele. Por causa desse obstáculo às vezes a água se divide e continua em seu caminho em três ou quatro finos filamentos, como uma teia formada por rastros de insetos. Ou desiste, e é engolida pela poeira do quintal. Shmuel Asch, cujos pais tinham perdido de uma só vez tudo o que economizaram na vida, cujo trabalho de pesquisa se frustrara, cujos estudos na universidade tinham se interrompido e cuja amada fora casar com seu namorado anterior, decidira, pois, aceitar o trabalho que lhe fora proposto (...)” (capítulo 7)
Bonita, charmosa e austera esfinge era Atalia, filha de um político da época da criação do Estado de Israel contrário à segregação e guerra contra os palestinos. Era, por isso, visto como um “Judas” de certa forma por seu próprio povo. Shmuel, instável e sempre propenso a choros e empolgações furtivas, se encantou com seu jeito de andar, mirá-lo friamente e explanar as esquisitices da rotina e do andamento da vida do sr. Wald. Sua tarefa seria confortá-lo em prosas das cinco às onze da noite, olhá-lo comer após preparar a refeição e pacientemente ouvir seus devaneios, choros e brigas ao telefone ou a solo após seu recolher aos aposentos. Estava também proibido de falar sobre a casa a terceiros ou trazer visitas.
“Os que o antecederam pelo visto estavam à procura de si mesmos. Não sei o que encontraram, mas nenhum deles ficou aqui mais do que alguns meses. Tantas horas livres lá em cima na água-furtada os atraíram de início, mas depois os oprimiram. Com certeza você veio até aqui para se isolar, para ir atrás de você mesmo. Ou talvez para compor uma poesia. É possível pensar que todos os assassinatos e torturas já acabaram e imaginar que o mundo já está mentalmente são e totalmente isento de todo sofrimento e só esperando com impaciência que apareça uma nova poesia (...) Esta casa pelo visto destila solidão.” (Atalia para Shmuel)
A dita descrição vai batendo certo com a rotina que se inicia na vida de Shmuel na estranha casa, uma diuturna caça por si próprio naquele inusitado refúgio que aumenta sua carência pelos entes que se foram, de lhes mostrar onde ele se está instalando junto ás suas angústias, fraquezas e incertezas, sempre confrontadas nos diálogos didáticos com seu companheiro por obrigação, isto é, o culto e contestador Wald.
Dilacerado por suas próprias frustrações e recentes perdas, vai então Shmuel se inserindo naquela dinâmica estranha da casa de Wald, cada vez mais encantado com a retração quase invitativa de Atalia e com os interesses maníacos de seu patrão, todo ele interessado em jornais e atualidades daquela conturbada época de guerra entre a pátria judaica e seus vizinhos egípcios e jordanianos. As descrições físicas de cada reação do protagonista, seus gestos e andares específicos (a cabeça sempre à frente do corpo, junto às pernas apressadas) contrastam com os olhares e quase-sorrires da senhora Abravanel.
Pouco a pouco vai o jovem Asch tomando parte na rotina de pertencimento àquela casa junto ao seu culto patrão e companheiro. O interesse de Wald sobre os estudos de Cristo de Shmuel dá voz a grandes discussões filosóficas sobre a necessidade (ou ausência dela) de religiões, ideologias e seitas, sempre fadadas a caírem no mal quando iniciadas do bem, carregando pelo amor as rotas do ódio e da opressão. Ao mesmo tempo, a visão de uma harmonia comum entre a humanidade vai se contornando em sua mente, instigando o protagonista a externar ainda mais a paixão carente e borbulhante que crescia por Atalia.
Em curtos capítulos agradáveis essa nova história de vida do auto piedoso Shmuel vai alternando suas reflexões sobre a teologia judaico-cristã, a promessa da Terra Prometida, a sua Israel, e à figura constante de Jesus como um potencial reformador do judaísmo, impedido que fora pelos fariseus e por Judas, traidor voluntário a fim de promover a redenção miraculosa de Cristo na crucificação, provando a divindade de seu mestre. Ato este que forjou o cristianismo e fez do mais opulento dos apóstolos o mais fanático cristão e entusiasta amente de Jesus. Em paralelo, seu amor próprio vai sendo canalizado em Atalia e seus mistérios. Ela parece pouco a pouco lhe abrir também os braços, como uma vertente da Trindade particular buscada pelo rapaz. Essa ponte é feita de maneira soberba por Amós.
“Você ou é um tipo de cãozinho excitado, barulhento, espevitado, se esfregando, e até quando está sentado na cadeira é como se de alguma forma estivesse girando atrás do próprio rabo, ou você, ao contrário, fica dias inteiros enfiado na cama como um cobertor de inverno que não se areja nunca” (Definição de Iardena sobre Shmuel e sua instabilidade emocional)
Deixando-se conhece a este asmático, inseguro e masoquista hóspede, vai Atalia descobrindo os meandros de Asch e suas frustrações, permitindo que ele inclusive achasse o elo familiar que liga a bela quarentona ao dono da propriedade. Ela havia sido nora dele quando, no front da Guerra de Independência israelense, em confronto com as forças árabes, seu marido perdera brutalmente a vida e deixou um buraco de dor e luto naqueles entes desamparados como a própria mansão onde abrigavam-se da crueza mundana.
Aos poucos vai ficando claro ao leitor a intenção de juntar um velho alquebrado com um jovem desesperançado naquela mansão, naquela cidade disputada e idolatrada e naquele país forjado à base do ressentimento e ódio entre um povo sem pátria, os judeus e sua Terra Prometida, e os árabes seculares e usurpados do local.
Wald e Shmuel discutem assim a gênese da escara israelense-palestina e o propósito daquele estado de sítio eterno e que custou e custará vidas de rapazes como o filho de Ghersom e ex-marido de Atalia. Como marxista, Shmuel compreende o rancor islâmico pelos hebreus e Wald, como sionista pró-governo, justifica a posição de fantoche ante as potências ocidentais que Israel ora encerra. Junto a essa delicada questão, a vida e obra de Cristo antes da edificação do cristianismo também é posta em reflexão por Asch, novamente entrando do campo possibilista sobre quantas mortes e horrores teriam sido poupados dos judeus se estes tivessem ao menos ouvido o que o nazareno tinha a dizer e reformar na torá e talmude.
Ateu ressentido dos humanos e de seu próprio povo na guerra contra os Estados árabes, vai Shmuel travando dentro de si as batalhas pela verdade que só o amor e o ódio frontal, centrados na figura de Judas, revelam, fazendo a roda da História humana girar. Sua força motriz passa a ser agora Atalia, a mulher com quem ele começa a sair, sentir-se atraído, discutir teologia e, claro, substituir o papel de Iardena em sua vida. Oz conseguiu neste belíssimo romance reflexivo unir a vida privada com as ideias amplas existenciais de seu personagem central.
“Mais de uma vez Shmuel tinha escrito, na imaginação, uma veemente carta a David Ben Gurion (...) no qual explicava que o afastamento dele do socialismo de sua juventude fora uma tragédia para o Estado de Israel, acrescentando a opinião de que a política de opressões de represália era estéril e perigosa porque a violência gera violência e a redenção pelo sangue gera redenção pelo sangue” (posição autor-protagonista ante o ódio árabe a Israel)
Pouco a pouco Amós vai nos contando toda a história de infância sofrida de Shmuel e os seus reflexos no homem contraditório que ele havia se tornado naquele país, casa e situação de desamparo ao qual se via, sendo Atalia cada vez mais sua única fonte de esperança e motivação pelos mais contraditórios motivos: pena, atração física, curiosidade etária ou apenas um passatempo que ele fosse para aquela mulher hirsuta e sagaz. As emoções do rapaz por essa nova musa de sua solidão vão ganhando fôlego contrastante e contraditório tal e qual as guerras santas que os povos da sua terra testemunharam e testemunham no ódio amoroso ou no amor odiento intrínseco, este que cada pessoa e nação carrega e lega. Na gigantesca profundidade filosófica que esta obra calou, creio ser sua maior mensagem a de humildade em aceitar a errática humana das religiões, sempre temperado com algum idealismo sonhado para amenizar as dores de sermos, adorarmos e detestarmos uns aos outros. Shmuel aprende isto mesmo ao experimentar amor incondicional a Wald e Atalia, justamente aquilo que seu objeto de estudos, Jesus, apregoava e morreu com a traição como companhia, assim como o servo Judas e Shaltiel, pai de Atalia. Traidores muitas vezes são visionários incompreendidos.




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