top of page

História do cerco de Lisboa - Máquina do tempo de Saramago

  • Foto do escritor: Júlio Moredo
    Júlio Moredo
  • 10 de nov. de 2020
  • 7 min de leitura

Neste romance denso, o autor te leva no rumo da difícil tomada da ora capital lusitana das mãos dos berberes e árabes que a mantinham há séculos. O mote para a narrativa é um intrépido revisor de livros, que modifica por puro idealismo o texto original sobre o cerco e inclui a palavra "não" onde haveria de ser "sim" para a ajuda dos cruzados na tomada

ree

Único e grande romance (quase) histórico do português José Saramago, História do cerco de Lisboa é uma viagem no tempo sobreposta pela dialética da atuação da História como ciência viva, sujeita a alterações de quem a narra, interpreta e estuda através das artes, sobretudo a literatura.


Com sua linguagem característica, sem pontuação e em pausas via vírgulas, árdua de se acostumar, o narrador vai intercalando em capítulos as ocorrências na idade média, mais precisamente em 1147, ano da tomada da futura capital portuguesa pelos cristãos, e os diálogos entre o historiador e o seu revisor para a publicação de um livro que reconstrua exatamente este feito passado. O profissional leva o nome de Raimundo Benvindo Silva, um solitário avulso na grande urbe, sem propósito forte ante a vida que vê.


A trama, assim, se inicia com um erudito bate-papo entre o escritor e estudioso da História com o seu revisor sobre as funções cruciais que a literatura contém desde os tempos em que o homem ainda nem escrevia. A tese do revisor era esta de que, dada sua importância implícita e onipresente, a literatura coordena todas as vontades do homem descrever e compreender a realidade que o cerca, fazendo das artes plásticas e visuais suas filhas diretas. Isto já dá ao leitor a dica de que o homem que recebe o relato da conquista lisboeta terá grandes tentações em alterar certos trechos do trabalho intelectual do historiador.


A viagem no tempo tem princípio já no segundo capítulo, onde o retratar poético-profundo do alvorecer numa Lisboa sarracena contagia quem é apaixonado por este período da humanidade, com o sacerdote da mesquita, chamado em árabe de almuadem, indo dar a alvorada e as primeiras orações a Alá junto aos primeiros raios de sol que iluminam as águas do Tejo. O texto é extremamente complexo e tem um quê de ensaio filosófico sobre o errar humano e suas muitas vertentes, repetidoras de enganos passados que dão às gerações seguintes interpretações viciosas, preconceituosas ou torpes da história dos povos, nações e pessoas. Raimundo, o revisor, estava para chancelar e reforçar certos desarranjos do próprio historiador sobre o célebre cerco da futura capital do reino português.


Assim, a trama vai envolvendo os amantes de livros como uma grandiosa homenagem aos fazedores de literatura, seja ela verídica ou romanceada, brincando como faz o narrador com a arte de se inventar, aumentar ou refazer histórias do passado e presente. Tendo em vista este rigor e a dúvida dialética de que contos de feitos seculares, na literatura historiográfica, podem ter sido manipulados ou mistificados, vai Raimundo criando raiva à obra.


Pondo em dúvida desde a infância de Afonso Henriques, o primeiro rei e fundador de Portugal como o conhecemos, com sua debilidade física nas pernas e os supostos “milagres” para ele se curar no desenterrar de uma capela à Virgem, até a sua ascensão como rei-conquistador, junto aos mouros nos campos de Ourique, onde viu Jesus. Ali Saramago põe toda a sua ironia em relação à fé cega a que a religião, especialmente a católica, manipula a seu favor.


Além deste fato também se destacam como marcos delusórios na revisão de Raimundo das 437 páginas do livro a questão de o almuadem não ser cego, como manda a tradição do islã, bem como a bandeira portuguesa ser hasteada já com as quinas das Chagas sacras no castelo de São Jorge (coisa que só foi posta no reinado seguinte, o de Sancho I) e também da falha no retirar da bandeira moura com a lua crescente, que só haveria de ser colocada em signos muçulmanos pelos otomanos, séculos depois. O culminar vem com a dúvida se o próprio herói Henriques saberia falar latim tão bem para galvanizar a tropa de cruzados estrangeiros .


“Pela primeira vez em tantos anos de ofício minucioso, Raimundo Silva não fará a leitura final e completa do livro. São, como já foi dito, 437 páginas fortíssimas de notas, para ler tudo teria de ficar acordado a noite inteira, ou pouco menos, e não lhe apetece o martírio, tomou-se de resoluta antipatia pela obra e pelo autor dela (...) no próximo centenário da tomada de Lisboa aos mouros, não faltará um presidente para evocar aquela suprema hora em que as quinas, no orgulho da vitória, tomaram o lugar do ímpio.”(Pg.36)

Imersivo na batalha brutal que tomava conta do ego do revisor, o andamento da história de Raimundo dá-se com ele se rendendo à dúvida de que muito provavelmente a tomada de Lisboa não contara com ajuda externa dos cruzados, o que foi reforçado pela quantidade de questões do relato do historiador que eram passíveis de negação. Assim, a palavra “não”, tão simples, foi incluída em todos os momentos em que aparecia a confirmativa da ação dos nortenhos em auxílio dos lusitanos na empreitada.


Após o seu glorioso crime, Silva passeia como um flâneur reflexivo (beirando, inclusive, o tédio para o leitor) pela cidade que nasceu e o criou, a mesma que em tantos séculos mudara tanto em relação àquele medieval burgo tornado praça de mouros infiéis. Cada beco, ruela, comércio, cão ou pessoa que lhe trespassa é agora parte do contexto imaginado pelo protagonista: A Lisboa dos sarracenos era a mesma em alguns trechos, e neles ele passava a reconstruir a retomada cristã do modo como ele, senhor da escrita, a desenhou.


“O revisor, cansado, sobe à Rua dos Cegos, entra no Pátio de D. Fradique, o tempo abre-se em dois ramos para não tocar nesta aldeia rupestre, está assim, a bem dizer, desde os godos, ou os romanos, ou os fenícios, depois é que vieram os mouros, os portugueses (...) À noite, neste espaço entre as casas baixas, juntam-se os três fantasmas, o do que foi, o do que esteve para ser, o do que poderia ter sido, não falam, olham-se como se olham cegos, e calam.”


Treze dias foram necessários para que Silva finalmente recebesse uma intimação da editora para ir explicar o seu grave erro de desvirtuar um fato histórico. Na reunião, com toda a diretoria da empresa, estava também uma moça misteriosa e incisiva quanto à seriedade de seu deslize. Seria ela a coordenadora de todas as revisões dali por diante. Como que instigado pela sua eloquência ao insistir nos pecados, idealistas ou infantis, feitos por Raimundo, ele se pega tenso, em ódio e amor indiscriminado por Maria Sara, mulher que, com um sorriso sempre sarcástico, o pega na arena de briga com os leões da editora sempre que estes parecem estar condescendendo com aquele pecado de negar a ajuda cruzada no livro.


Fica decidido, com muita sorte para o protagonista e muita saúde mental do leitor, pelo denso diálogo, que ele seria mantido nos quadros da companhia após duas cartas de desculpas, ao autor e à própria editora, após o ocorrido. O escritor a dispensou, achando até compreensível a alteração de Silva por causa de seu ar existencialista.

Ele assim mesmo as fez e saiu da redação como que colocado num compreensível limbo profissional, especialmente pela perversa lucidez e julgamento daquela misteriosa senhora e, apesar da dura tarefa que é dissecar os pensamentos dos personagens de Saramago, todos nós somos remetidos a experiências como a vivida por Raimundo, perdido em meio aos leões que o querem devorar por seu descuido proposital, idealista ou simplesmente errático. Convém dizer que o livro fora publicado assim mesmo, mas com o satírico aviso no início: “onde estiver escrito ‘Não’ leia-se ‘Sim.’”


Curiosamente ou não, depois de alguns dias Maria Sara invita Raimundo para uma nova reunião onde não só reforça sua posição como estimado e experiente revisor da editora como sugere que ele faça, agora sem erratas, a história do cerco de Lisboa na perspectiva hipotética e ensaística de que os cruzados realmente não ajudaram os portugueses na empresa e assédio à cidade, ficando só alguns poucos da tropa pan-europeia para auxiliar o rei português. Confuso, espantado e cada vez mais encantado, deslumbrado de maneira inexplicável com a aparência despojada e trejeitos inovadores da moça, Silva se vê novamente num confronto moral e dialético consigo próprio quando retorna da reunião sem saber se aceita ou não atarefa, bem como não fazendo ideia do que aquela dama tão extraordinária quer ou enxerga nele. São novamente divagações filosóficas brutas sobre cada ato, palavra e atitude que tomamos em vida e o que ela significa ao universo em redor.

“...é menos dificultoso conceber, criar, construir e manipular um cérebro eletrônico do que encontrar no nosso próprio a simples maneira de ser feliz (...) Raimundo Silva olhou e tornou a olhar, o universo murmura sob a chuva, meu Deus, que doce e suave tristeza, e que não nos falte nunca, nem mesmo nas horas de alegria.” (capítulo 5)


Assim a história finalmente começa a desembaraçar-se para promover o tão esperado encontro entre passado e futuro, com todas as implicações de diferenças de épocas untadas com os aspectos atemporais imutáveis da vida: A força das palavras, o poder da oração, humana e ao divino, a eterna dúvida racional que paira cada milagre, cada feito heroico e cada conquista bélica, além, claro, de contrapor Raimundo Silva com os cruzados, o próprio rei Afonso Henriques e Mogueime, seu protagonista no cerco, durante a leitura. O amor deste último pela concubina Ouroana, capturada na Galícia por um cruzado alemão, contrastam com o dele próprio por sua Maria Sara em genial encontro entre modernismo e trova do medievo.


A despeito da profundidade filosófica que rege a prosa específica desta obra, A história do cerco de Lisboa se transforma de capítulo a capítulo numa estrada bifurcada, com muitos escapes e variáveis interpretativas, com o objetivo de conhecer a si próprio a partir do mundo que o cerca, do emergir despretensioso duma paixão atual semeada por uma proposta de recriar um passado secular de uma cidade que, como a vida, feita de amores, dores, pavores e autoconhecimento e a busca implacável deste e de seu melhor talento para a posteridade feito por Raimundo, já a caminho da velhice e encorajado por sua primeira/nova/velha musa. Materialista como é, Saramago vê milagre na força sonhadora dos homens simples, como Raimundo e a figura de proa da nova história do cerco, Mogueime, como motrizes de uma mudança de conceitos e paradigmas a uma nova nação nascente, a portuguesa. O que se tira desta obra instigante tanto quanto cansativa é que o amor é a religião primária do mundo e a união de homens e classes torna objetivos utópicos em realidade, como Raimundo e Sara comprovariam no amor que constroem junto ao novo livro.

Comments


Júlio Moredo

  • Instagram

Rua Girassol, 1513 - Vila Madalena - São Paulo- SP

contato@literativo.com

(11) 9.9233-6944 , (11) 9.8282-5841

 

 

© 2020 por Júlio Moredo. Todos os direitos reservados

bottom of page