O Velho e o Mar - O tênue fio que aparta dor e júbilo
- Júlio Moredo

- 5 de out. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 10 de nov. de 2020
Uma novela-ensaio de Ernest Hemingway sobre esperanças internas e externas, a relação do homem com seus pares, os animais, a perseverança e fé que a experiência de vida, do dia a dia, traz às pessoas com o gradual passar dos anos.

O enredo é narrado em terceira pessoa num texto corrido e objetivo, mas que consegue aliar isto a uma grande sensibilidade na tocante relação entre o protagonista, Santiago, o velho pescador do título, e o seu pupilo e melhor amigo, Manolin, um adolescente que aprendeu tudo o que sabia sobre o ofício de pescar com ele, devendo-o gratidão e nutrindo admiração transformada em clemência quando vê seu amado mestre numa maré de má sorte, não pescando há oitenta e quatro luas.
A capacidade descritiva e de síntese poética de Hemingway começam a se destacar durante os preparativos feitos para o dia da próxima pescaria de Santiago, quase todo ele preparado por Manolin, do arranjo de iscas à marmita para suprir a fome e a carência de tudo que a cabana de madeira do marinheiro encerra: Morada tipicamente latino-americana, repleta de limitações de espaço ou conforto, com retrato do Sagrado Coração à parede junto ao da esposa, aparentemente falecida, e milhares de jornais antigos a reportar partidas de baseball.
Este embelezar sem pretensão do narrador segue senda quando, pela manhã, ainda sem o sol haver nascido, Santiago parte com as bênçãos de um filho de Manolin no rumo esperançoso de uma nova pescaria, mais uma oportunidade de fazer dinheiro com o que sabe e sempre soube fazer, zerando a má fortuna vigente.
Sua relação com presságios dos animais que circundam a costa, desde as apiedadas andorinhas-pescadoras, vistas como ele, alguém em desvantagem naquela dura caçada diária, passando pelas tartarugas e os seus ovos, que o dão forças, até os grandes golfinhos da costa, sinalizadores dos cardumes, dão ainda mais coloração a essa experiência in natura, reflexiva, que o leitor parece viver junto da canoa do velho como ajudante, contramestre e adepto de sua empreitada contra o medo e a desesperança, sempre com a gratidão de um amante em relação ao oceano à sua volta.
“O velho pensava sempre no mar como sendo la mar, que é como lhe chamam em espanhol quando verdadeiramente lhe querem. Às vezes aqueles que o amam lhe dão nomes feios mas sempre como se se tratasse de uma mulher. Alguns dos pescadores mais novos (...) dizem el mar, que é masculino. Falam do mar como um adversário (...) Mas o velho pescador pensa sempre no mar no feminino e como se fosse uma coisa que desse ou não desse grandes favores, e se o mar fizesse coisas selvagens ou cruéis era só porque não podia evitá-lo. ‘A lua afeta o mar tal como afeta as mulheres’, pensou o velho. (página 31)
Sensível, sonhador e resignado, Santiago já se vê numa luta consigo próprio para não ceder ao peso da idade e dos músculos eu já falham apesar de fortes. No começo da empreitada fica com grande gana de se render ao sono após preparar varas, linhas e iscas espalhadas por diversos pontos do leito marítimo, variando de profundidade cada peixe-alvo, indo dos médios aos maiores quanto mais fundo ele cravasse seus anzóis e seus chamarizes de sardinhas que Manolin providenciou.
Desejava imenso sair para seus sonhos mais íntimos, quando regressava às brancas praias africanas de sua mocidade, a escutar leões quando visitou o continente a bordo de um cargueiro. Como isso não era possível, fala e canta sozinho no mar alto à espera do ansiado puxão de linha de algum animal dos grandes. É o que ocorre momentos depois, quando se depara com um fabuloso marlim que se interessa por sua maior isca. Está iniciada uma das relações mais bonitas entre carrasco e vítima, humano e animal, natureza e tecnologia.
Nela Santiago é unido pela forte linha de pesca ao fabuloso peixe fisgado, tão perseverante e lutador quanto ele. A linha é o cordão umbilical que une aquelas duas almas que têm em comum o dom da vida e a necessidade de sobreviver. O marlim pego não iria facilitar o trabalho do velho, que por horas a fio segue sua toada dando-lhe mais e mais rolos da linha para ser sumariamente rebocado à deriva pela fera com o rolo amarrado às costas, incansável titã que era a pelejar por sua parte na guerra entre a vida e a morte de um ou de outro.
“Quem tem o anzol na boca é ele. Mas que peixe deve ser para puxar desta maneira! Deve ter a boca fechada sobre o anzol. Gostaria de poder vê-lo. Gostaria de ver uma só vez para saber o que tenho pela frente.” (página 49).
Uma ode ao autoconhecimento e à interação inata que nós, seres partilhantes de um mesmo planeta, possuímos ocorre durante a primeira sacrificante noite do lento encoleirar do peixe. Santiago é obrigado a tentar dormir com mais um rolo atado ao cabo principal, juntado ao ombro direito do pescador. “Como gostaria de ter aqui o rapaz” era tudo o que ele vibrava em pensamentos ou falas na imensidão escura da noite. Pela manhã, puxado pelo seu rival, seu barco recebe um passarito que pousa na linha que pende o peixe, em espaço para uma tripla interação, pois está ali um homem, um peixe e uma ave unidos por uma corda, simbolismo de como estamos conectados ao meio ambiente e à vontade maior de existir e persistir na Terra.
“Se eu fosse ele, reuniria agora todas as minhas forças e começaria a correr com toda a velocidade até que qualquer coisa partisse. Mas, graças a Deus, não são tão inteligentes como nós, nós que o matamos, embora sejam mais nobres e mais valiosos.”
Eis o sábio raciocínio de Santiago quando, horas depois, se vê morto em cãibras numa luta feroz com o peixão acabado de dar as caras num salto superfície acima. Ele sabe o papel de predador voraz que os homens têm e cada vez mais valoriza o peixe, seu antagonista e restaurador de confiança, forças e esperanças.
Pescador e pesca, gradualmente, vão se completando num ciclo vital, com Santiago a ter ternura por sua presa, que mata por necessidade como todos os homens deveriam fazer com seus irmãos, os animais. Orando, ele relembra tempos passados em que fora El Campeón de quedas de braço, dialogando com sua irmanada vítima. Assim Santiago vai travando o grande confronto que jamais teve no rumo da regeneração de estima e espírito que só o mar e os seus filhos diletos, os peixes, poderiam dar a um marítimo disposto a pôr à prova cada músculo na peleja de morte que é a vida, encarando de frente seu tênue fio que aparta dor e rejúbilo, glória e fracasso, virtude e pecado, caça e predação, sorte e azar, otimismo e desilusão.




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