A Revolução dos Bichos - A obra definitiva sobre corrupção
- Júlio Moredo

- 10 de nov. de 2020
- 5 min de leitura
Os porcos guiaram os amorfos bichos da fazenda do sr. Jones, o então "burguês opressor". O que (não) se podia prever era que esta casta de articuladores iria pouco a pouco oprimir os seus camaradas numa nova autocracia disfarçada de patriotismo e justiça social

Escrita como um sátira ensaística sobre as sociedades humanas da modernidade em que o autor viveu, A Revolução dos Bichos, novela do escritor e ativista inglês George Orwell, transporta-nos a uma trama metafórica em que animais são humanizados e representam diversas classes e setores das conturbadas sociedades do que Hobsbawn classificaria como “O longo século XIX e o breve século XX”.
O enredo trata de uma fazenda outrora próspera do interior britânico, onde o sr. Jones, o fazendeiro, homem, patrão e opressor, suga seus animais de carga, alimentícios ou de guarda até a exaustão, fome e a morte em seus desígnios exploratórios de lucro, conforto e opulência à sua família. Claramente representando a burguesia industrial surgida no país de Orwell em meados do século XVIII e que sustenta, com a luta de classes e a divisão internacional do trabalho, os pilares do que conhecemos como socialismo científico.
Em contraponto a essa vil e inconsciente escravidão animal estão os porcos, os mais lestos e inteligentes bichos da área, que, por intermédio de seu líder, o moribundo e sábio Velho Major, instiga e instrui numa célebre reunião “partidária” todas a bicharada da fazenda a se insurgir contra aquele terrível opressor, plantando, antes de morrer pouco tempo depois, a canção que dirigiria as forjas do ideal criado pelos seus porcos sucessores, Napoleão, Garganta e Bola-de-Neve — O animalismo, com pautas, agendas e propostas para o pós-revolução, de divisão, justiça e prosperidade a toda a população animal da fazenda.
Tanto o animalismo como a canção do Velho Major são, por óbvio, alusões ao marxismo, à ditadura do proletariado, à sociedade comunista regida sonoramente pela canção “Bichos da Inglaterra”, a Internacional dos quadrúpedes, que forjaria uma República. Assim George, de forma magistral, critica tanto a exploração alienante e subserviente do capitalismo em seu estágio refinado, segundo o próprio Marx, quanto também uma revolução tirânica de falso preceito libertário, que foi o socialismo advindo da Revolução Bolchevique na Rússia.
O fato de toda obra se passar na Inglaterra, berço deste tipo de organização socioeconômica, e aludir à Rússia czarista (o estopim para a revolta dos animais não foi a organização e planejamento do animalismo, mas sim a fome em si, com a crise na produção e distribuição de bens na fazenda, em evidente comparação com o que houve na agrária Rússia de 1917, tornam o livro um profundo instrumento reflexivo sobre o que deu errado na metodologia materialista-histórica-dialética proposta por Max e Engels e levada a cabo por figuras nefastas como Mao, Stalin ou Fidel.
Também na organização social do “partido animal”, vemos uma balança a contrapor as sociedades estatistas e militares que surgiram das revoluções socialistas ao redor do globo — Os cavalos são bons em servir e decorar haveres e deveres mas péssimos em os interpretar. Os cachorros, sabujos, serão sentinelas dos porcos, com as vacas, cabras, ovelhas e galinhas a serem feitos de meras massas de manobras, amorfas e irracionais, a trabalharem para suster o novo sistema de produção/distribuição dos bens de consumo da gleba.
“Esses três (os porcos) haviam organizado os ensinamentos do Major (já falecido) num sistema de pensamento a que deram o nome de animalismo (comunismo animal). Várias noites por semana, depois que Jones dormia, faziam reuniões secretas no celeiro e expunham aos outros os princípios do animalismo. De início (...) Alguns animais mencionavam o dever de lealdade para com Jones, a quem se referiam como o ‘dono’, ou emitiam comentários elementares do tipo: ‘O senhor Jones nos alimenta. Se ele fosse embora, nós morreríamos de fome’ (...) E os porcos tinham grandes dificuldades em fazê-los ver que isso ia contra o espírito do animalismo (...) (Capítulo dois, no planejar revolucionário)
O corvo, um apoiador dos humanos, foge com eles no expurgo. A esperta ave tentou ainda dissuadir os “camaradas” bichos a não intentarem contra os seus senhores, cravando neles uma espécie de teoria messiânica em que, no pós-vida, todos eles gozariam de uma terra de eterna felicidade, fartura e prazer. O corvo, desta feita, é uma alegoria às religiões institucionalizadas, o “ópio do povo” que atrasa e aliena as revoluções de classe.
Pondo o sr. Jones e sua família para correr, essa nova organização social promove(não tão) profundas mudanças no modo de se relacionar, trabalhar e adquirir o que se planta. Em seguida, rebatizam a granja de “Dos Bichos” em detrimento ao antigo nome (“Do Solar) e forjam os “Sete Mandamentos” do animalismo, diretrizes desta nova sociedade, com direito à bandeira (um pano grafado com um chifre e um casco), feriado de aniversário e lema (“Quatro patas bom, duas pernas ruim” ) para fidelizar todos os integrantes no grande projeto político.
O paradoxo, porém, era que eles estavam, desde a primeira hora em que tomaram a fazenda, se apropriando como homens dos meios de produção, se “humanizando” (como um proletário se torna burguês), com os porcos, líderes, se apropriando da maior extração de leite das vacas e da colheita de frutas e grãos nos pomares e lavouras para, em seguida, conhecer e tomar gosto pela tecnologia e confortos humanos.
Napoleão e Bola-de-Neve eram, assim, os “secretários”, com Garganta sendo u mero puxa-saco dos comissários daquele novo “partido”. Os líderes, então, passaram a lutar pela hegemonia política e dos rumos da revolução (como Trotsky e Stálin). O pobre Sansão, forte cavalo, fazia acontecer tarefas árduas com leal espírito coletivo, inquebrável e calado, sem contestar o quão explorado estava sendo. Da mesma forma, as galinhas começaram a produzir ovos em escala industrial para dar conta da demanda do comércio com fazendas vizinhas, tudo sem protestos e passivamente quando se tornou claro que vozes e votações estavam abolidas.
“Cada qual trabalhava de acordo com sua capacidade (...) Ninguém roubava, ninguém resmungava a respeito das rações. A discórdia, as mordidas, o ciúme, tinha quase desaparecido. Ninguém se esquivava ao trabalho (...) (Descrição social, capítulo três)
Astutos, os porcos começaram a alfabetizar e doutrinar os demais sobre seus deveres e haveres e, pouco a pouco, foram ficando com os melhores produtos das colheitas. Quando houve protestos, eles alegaram ser estes alimentos vitais para a saúde dos suínos, que eram as forças intelectuais da revolução, ameaçando com o retorno da família Jones em caso de suas mortes. Estava criado o populismo e a opressão suínos na Granja.
Como Marx diria, a História ali se repetia como tragédia e farsa nesta magistral alusão a governos autocráticos à esquerda e à direita que mixam persuasão, medo, galvanização, mentiras e inimigos (reais ou imaginários) para forjarem a fórmula da tirania, deixando a igualdade como um ideal inconveniente.




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