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A morte de Ivan Ilitch - Todos morremos e vivemos a sós

  • Foto do escritor: Júlio Moredo
    Júlio Moredo
  • 10 de nov. de 2020
  • 5 min de leitura

Este mágico russo das palavras desnuda as frustrações de um outrora ambicioso e saudável rapaz que construíra pra si relações supérfulas e mentirosas, inclusive com seus entes que se criam queridos

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Considerada uma das mais célebres, complexas, bem narradas e construídas novelas da literatura universal, A Morte de Ivan Ilitch somou mais um grande feito ao romancista russo León Tolstói: Lograr em poucas páginas conduzir o leitor com graça e fluidez ao tortuoso e meandrado mundo das aristocracias burguesas do século XIX, com enfoque, é claro, na Rússia czarista do período da Belle Epoque europeia.


O texto é de um realismo todo próprio, que narra em terceira pessoa todos os fatos póstumos e precedentes de Ivan Ilitch, um respeitável burocrata morto aos 45 anos, deixando mulher e filhos abastados e materialistas para legá-lo. Homem moldado às faces desta aristocracia e estudado para ser juiz, ele é pincelado pela boa educação e envernizado pela pompa da aparência e disposição de ferro que toda ambição social exige.


A trama se inicia em seu funeral, onde parentes e amigos nos são apresentados. Leon deixa sutilmente claro que seus entes ali reunidos têm seus próprios mundos, interesses e burocracias a resolver com a morte do protagonista. Sua passagem, portanto, soa secundária em muitos momentos dessa cena (o diálogo entre sua esposa, Praskovya Fiodorovna, ansiosa pela pensão, e seu amigo mais próximo, Piotr Ivanovitch, louco para ir jogar carteado, é emblemático disto mesmo).


Após essa breve introdução, Tolstói conta como viveu de modo diligente e imperativo o nosso Ivan Ilitch, numa dialógica em que nos vemos como o próprio defunto quando tentamos alimentar nossos egos e poderes e equilibrá-los na balança junto aos bons costumes e à dignidade de uma grande reputação. Talvez isto seja o foco de toda a obra e a torne tão sedutora e atemporal.


"...Agora que ele era um magistrado sentia que todos – todos sem exceção, até aquele mais importante e autossuficiente – estavam em suas mãos...” (pag. 24, capítulo 2)

Ilitch seguiu conquistando posses e cargos e ficando inconformado em não ser indicado para o cargo de chefe num magistério. Este lhe era caro mais do que tudo, principalmente para aturar sua já cansativa vida pessoal, regalo de um casamento cedo e precipitado com Praskovya. A derradeira promoção veio de um conhecido seu em Kursk, que o colocou como juiz em Petersburgo. Ivan galgou assim seu almejado salário de cinco mil rublos, aceitável a suas pretensões para a maturidade.


Essa sanha banal e carreirista provavelmente faz a novela tão magistral, pois, em suma, Ilitch era um homem ordinário tanto em sua bondade medida como em sua ambição mesquinha: “Onde cessassem as relações oficiais, cessava também qualquer forma de contato. Essa arte de separar tão bem a vida oficial da vida real Ivan Ilitch possuía no mais alto grau e a prática associada ao talento a tal ponto de perfeição que muitas vezes, como os virtuoses, ele até se permitia mesclar suas relações humanas com as oficiais.”, (capítulo 3, página 41)


Na segunda parte da narrativa, onde sua doença (desencadeada numa reforma em seu sonhado palacete), a solidão e fragilidade humana se escancaram sobre ele. A enfermidade se apresenta quase em simultâneo aos constantes entreveros entre ele e a mulher, que já tronavam a convivência do casal insuportável. A debilidade física de se inicia, então, como uma dor aguda na lateral de seu apêndice e segue rumo a um gosto terrível de bile em sua boca. Uma dor quase personificada e que será sua juíza e ele, Ivan Golovin, o réu indefeso.


A passagem em que Ilitch vai ao médico é onde Tolstói, com sua notável compreensão de alma, discorre sobre a depressão da indiferença que arrebatam-no com o diagnóstico dúbio e frio que o doutor lhe dá a seu problema de saúde. A mais filosófica das passagens da obra junta Rousseau e Foulcault. Isto é, o ditatorial contrato social das vidas urbanas e o senso quase inconsciente de pequena autoridade que cercam as profissões da assim chamada Modernidade:


“O médico concluiu tudo brilhantemente, olhando triunfante por sobre os óculos para o acusado. A partir da fala do médico, Ivan Ilitch concluiu que as coisas não estavam bem, mas que para o médico e provavelmente para todas as outras pessoas isso não faria a menor diferença, enquanto para ele era simplesmente terrível. E essa conclusão foi dolorosa, despertando-lhe um grande sentimento de autopiedade, e de amargura em relação ao médico que não se importava nem um pouco com uma questão tão importante.” (Capítulo 4, página 47).


Ilitch alude a atitude do doutor com a sua própria ante os seus acusados e subordinados no tribunal, e vê que ele mesmo usou, abusou e se lambuzou na sanha dos pequenos poderes. Em casa, sua esposa e Liza, sua filha, já o viam como estorvo enquanto suas capacidades físicas iam piorando. Amigos como o ambicioso jovem Schwartz ou o bitolado Shebek só o podiam consolar no carteado, sua paixão e escape desde sempre, mas mesmo o prazer do baralho lhe estava sendo tirado pela gradual fragilidade de seus membros. Cada vez mais o grande jurista sentia-se um peso morto aos que o cercavam, encaminhando-se para uma morte a solo. A solo não, mas com a doença doída que o acompanhava e latejava a cada momento de angústia. O pavor do inevitável que se acercava era tocado como alarme pela moléstia que o acometia.


“Ivan Ilitch passava agora a maior parte do seu tempo nessas tentativas de reencontrar a antiga proteção mental que mantinha a morte fora de sua vista.” (capítulo 6, página 65). É nesse diálogo que autor e personagem se encontram para comprovar o quão solitário é o homem no nascimento e ao morrer. Tolstói mostra-nos como Ivan se negava a entender essa lógica, tão aplicável a todos (inclusive àqueles insensíveis ao seu sofrimento), menos a ele. Aos poucos, o imbatível Golovin vai sentindo (apavorado) sua iminente sina. Olhando para dentro de si, física e espiritualmente. Perguntando se havia vivido bem e verdadeiramente. Eis o ponto nevrálgico em que o leitor é invitado com sutileza a refletir sobre o que valeu e vale, de fato, a pena viver.


O calvário do é arrefecido somente pelo amor do filho Volodya e a alma prestativa, pura e sincera de Gerassim, seu mordomo camponês. Este o trata com a dignidade honesta de um moribundo quando todos os outros a seu redor hipocritamente fingem não saber do breve destino que o aguarda, tratando-o como estorvo às suas felicidades mesquinhas. A relação entre ambos, patrão e empregado, é tocante e ao mesmo tempo pede um pensar sobre toda a fragilidade e carência infantil que nos acompanha durante toda a vida a despeito da encenação fria do contrato social. Este é provavelmente o espírito que a magnificamente simples Morte de Ivan Ilitch quer nos transmitir, sendo ela um ensaio sobre um grito de alerta de um existir pouco sentido.

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