A Metamorfose - Transmutação aberrante de quem somos
- Júlio Moredo

- 10 de nov. de 2020
- 2 min de leitura
Maior clássico de Kafka, a novela nos conduz no rumo das entranhas de sermos, existirmos e perdurarmos no rumo inevitável da solidão e desespero de se estar numa prisão cotidiana invisível

Kafka (e Gregor, por conseguinte), passam a maior parte das 103 páginas da trama entre o devaneio e a ponderação de seu contexto passado e atual (transformado em inseto), no ambiente mais “seu” no que se refere ao apartamento da Família Samsa e sua dinãmica familiar.
O narrador, dessa forma, mostra-se tão confuso quanto nós (leitores) em dissecar o que ocorreu na primeira manhã da narrativa, ou seja, a própria metamorfose de Gregor em animal. Ele expressa sempre essa confusão utilizando-se de um texto cru e irônico para descrever a progressiva “bestialização” de Gregor e sua perda gradual de tudo o que (ainda) lhe era caro quando humano (como quando da passagem em que tentam retirar o quadro da “mulher desejo” de seu quarto/toca).
Principalmente no que diz respeito ao núcleo da familia Samsa, a passagem à besta não se sumariza em Gregor, que perde, como explanado, a dignidade de prover seu lar e, somando-se a sua monstruosa aparência, dissolve-se os laços mais complexos (sentimentais) da família em relação a ele próprio (e justamente pelo fator econômico, vemos o quão tênue eram esses laços): o respeito mínimo do pai (sr. Samsa), o amor da mãe e a guarida afetiva (quase apaixonada, da parte de Gregor), pela sua irmã Grete.
Desse modo, fica fácil compreender a análise de Theodor Adorno sobre a obra Kafkiana, pois, munido da frieza de um marxismo que lhe é peculiar, Adorno insere a família Samsa no contexto da pequena burguesia da Europa Central do início do século XX, afirmando: “Kafka (em “A Metamorfose”), molda o atestado de óbito dos valores burgueses em vigência no seu tempo”.
Essa selvageria reinante nos seres da trama comprovam isso, mesmo com Gregor demonstrando aspectos e reações tipicamente humanas na carapaça de Barata (como quando da cena “climax” do violino e dos inquilinos na sala), em que este é tomado de amor e desejo pelo belo (a música e sua irmã), para ir de encontro à sua própria destruição moral e psíquica, pela reação de seus familiares presentes no cômodo.
A mensagem que fica, a meu ver, humildemente, é a de que Kafka incita-nos a observar o quão animalesco somos em contextos desfavoráveis ao nosso.
A relação de Gregor com seu trabalho e o carma da obrigação de quitar por seu pai uma dívida que não era sua, além do modo adverso com que é tratado pelo cruel gerente da firma, refletem, por fim e mais importânte, no modo ESCROTO como sua própria família simplesmente despacha seu cadáver, cabendo à proletária faxineira livrar-se do indesejável ente morto (que é, não a toa, a única na casa ainda a tratar Gregor sem repugnância).
O emblemático epílogo, em que os três (pai, mãe e irmã) passeiam aliviados de bonde pela cidade, pensando nas mais variadas “futilidades mundanas futuras” após a morte sofrida e traumática do filho, deixa-me a conciência final da ironia trágica e dura dessa Monalisa de Kafka - A de que Gregor, mesmo em inseto, era e sempre havia sido muito mais humano do que seus três familiares juntos.




Comentários