A Escrava Isaura - Ficção realista sobre a dor da escravidão
- Júlio Moredo
- 10 de nov. de 2020
- 5 min de leitura
Bernardo Guimarães logra colocar em pauta a humanidade dos escravos e suas mazelas humilhantes e desumanas na sociedade oligárquica brasileira do século XIX

Escrito em 1875, em pleno movimento abolicionista, a novela-romance do escritor mineiro Bernardo Guimarães gravou seu nome para a posteridade dos grandes do romantismo brasileiro. A trama se passa nas imediações do baixo Paraíba do Sul, próximo à cidade de Campos dos Goitacazes, um ano após o Golpe da Maioridade que deu início ao Segundo Reinado no Brasil, sob D. Pedro II.
Além de sua linguagem formal mas muito atrativa, que o prende num descrever cênico cativante página à pagina, Guimarães é exímio em retratar de modo sucinto o modo de ser de cada personagem e ação, com a intenção óbvia de chocar a alta sociedade oligárquica brasileira com os horrores causados a uma escrava alva como as mais brancas europeias, uma invitação a refletir a condenável e monstruosa prática da escravidão, perdurada ainda treze anos após sua publicação.
Para tanto, Bernardo usa de subterfúgios subtis e de clara compreensão de latifundiários, pequenos burgueses ou damas da corte que leriam seu livro; criou personagens de ilustrado maniqueísmo e enfatizou os tormentos da pobre e beata Isaura nas mãos impiedosas de seus donos e pretendentes. A construção narrativa, portanto, é fincada no aparecer e atuar quase teatral dos interveniente. O narrador, onisciente e distante, relata o passado de cada um deles até revelar sua relação umbilical com a figura central que dá nome ao romance.
Isaura é uma moça belíssima e que reflete em sua pele nevada todo o racismo que causa pensar em sua cativa situação. Presa a uma família que foi sua algoz e benfeitora, com o cruel Comendador, violador de sua mãe, e a gentil senhora sua esposa, que a cria com juras de eterno amor e ternura por ser a filha que sempre desejou e lhe foi negada.
“Isaura procurava ser humilde como qualquer outra escrava (...) Não obstante porém toda essa modéstia e humildade transluzia-lhe, mesmo a despeito dela, no olhar, na linguagem e nas maneiras, certa dignidade e orgulho nativo, proveniente talvez da consciência de sua superioridade.” (Trecho do romance)
Com a morte de sua mãe adotiva e biológica e a expulsão de Miguel, seu pai, um honrado feitor português, pelo ciúme e sadismo do Comendador, vê-se Isaura sozinha para cuidar de sua nova patroa e amiga, Malvina, esposa do terrível Leôncio, filho do senhor e da senhora.
O jovem é um pervertido e insensível bon vivant, mimado até as turras pelo pai, que o mandou sem sucesso estudar nos melhores colégios brasileiros e europeus. Leôncio passará todo o enredo perseguindo de modo doentio Isaura, que o despreza e luta contra o seu libido pelo asco que se lhe incorre e pela lealdade a Malvina.
“Ah! Senhor! Bem sei de quanto é capaz. Foi assim que seu pai fez morrer de desgosto e maus tratos a minha pobre mãe; já vejo que me é destinada a mesma sorte. Mas fique certo que não me faltarão meios nem a coragem para ficar para sempre livre do senhor e do mundo.” (Isaura a Leôncio)
O drama se completa com a intervenção de Henrique, irmão de Malvina que, ao passar uns dias à casa do cunhado, também se encanta e enamora da face e trejeitos angelicais da menina-moça. Igualmente rejeitado e flagrado por Leôncio no cortejo, este denuncia à sua irmã a louca paixão de seu marido pela escrava, o que faz o mundo desabar para a pobre Isaura. À exigência de libertar ou mandá-la embora, Leôncio escusa-se sob o pretexto de ela ser propriedade de seu pai. Pressionado por Miguel para aceitar a venda de sua liberdade, o vilão é beneficiado da notícia da morte de seu progenitor, que vivia na corte do Rio de Janeiro.
Isaura é então enredada em uma teia de intrigas onde o próprio âmago feminino é posto em contexto pelo narrador: ela causa inveja em Rosa, antiga concubina de Leôncio, fazendo com que esta vire sua inimiga velada, envenenando a mente de Malvina contra a sua antiga amiga e protegida. A heroína é posta então junto às demais para fiar e tecer à exaustão de modo a fazê-la ceder às pretensões sexuais de seu proprietário, que viu sua esposa o abandonar pela decisão de a manter na fazenda.
“Nem aqui posso achar um pouco de sossego!... Em toda parte juraram martirizarem-me!... Na sala, os brancos me perseguem e armam mil intrigas e enredos para me atormentarem. Aqui, onde entre minhas parceiras, que parecem me querer bem, esperava ficar mais tranquila, há uma, que por inveja, me olha de revés e só trata de achincalhar-me.” (Reflexão de Isaura)
Ameaçada com o tronco ou a cama, literalmente, Miguel, o gentil progenitor da heroína, desespera-se e maquina a fuga de ambos rio Paraíba abaixo, rumo ao porto de Campos e, por fim, a uma vida de sigilo e discrição no nordeste do país, mais precisamente em Recife. O plano ocorre a contento e, na segunda parte da narrativa, encontramos pai e filha vivendo às escondidas em uma chacra nas imediações da capital pernambucana.
“Não se meta em tal; é tempo perdido. As autoridades nada têm que ver com o que se passa no interior da casa dos ricos.” (Resposta dos consultores a Miguel antes de sua fuga)
É neste momento que aparece Álvaro, perdidamente apaixonado pelos modos e gestos angelicais de Isaura (que muda seu nome para Elvira). O moço é a antítese de Leôncio – justo, valoroso e bom de índole e coração. Logo nem a reserva de Elvira é capaz impedi-lo de se aproximar de sua casa e pouco a pouco atraí-la para exibir todas as suas qualidades junto à alta sociedade local, fazendo novamente corar de ciúmes as mais finas mulheres, todas desejosas de um noivado com tão nobre partido (Álvaro). Ele, porém, só tem olhos para a disfarçada Isaura e o demonstra claramente, também ganhando o coração puro da fugitiva a cada gesto de carinho e cuidado.
A reviravolta trágica vem de fronte a eles quando Martinho, um aproveitador e desonesto colega de Álvaro e conviva do baile, compara Elvira com o retrato da escrava fugida e procurada. O mesquinho então denuncia a todos os presentes a identidade de Elvira, que confirmar a fraude. Álvaro vê-se logrado tão rapidamente quanto se apieda da tragédia que acomete sua musa, fazendo de tudo para protegê-la da polícia.
Eis então o gran finale, onde o drama de Isaura e Miguel é posto em perspectiva do escravismo e da bondade e maldade incutidas nos homens de uma sociedade regida por ele. Leôncio vai pessoalmente reclamar sua posse e nem o suborno é capaz de dobrá-lo. Isaura retorna à fazenda onde nasceu acorrentada a uma parede até resignar-se ao sue carrasco e adorador. A luz de esperança reside no amor e persistência incondicionais de Álvaro, que levará a termo este clássico da literatura brasileira.
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